quinta-feira, 9 de março de 2006

quando os lírios se fecharam

pergunto onde estão teus tamborins
sentado na porta de minha casa
a mesma e única casa
a casa onde eu sempre morei
(Minha Casa, de Zeca Baleiro)

Morde os meus desejos. Porque os teus o tempo desperdiçou. Lançou pia adentro. Estão agora lavando o musgo enraizado nas pedras de um riacho amaldiçoado. Desisti quando as flores de lírios se fecharam. Quando abertas, alvas e perfumadas, tragavam os dias aflitos e as noites maldormidas. As flores conduziam a paixão pelos corredores da casa.

Nem o piano resistiu. E não por desamor, mas desencanto. Porque o tempo de decomposição transformou o lirismo em brisa soturna. A vivacidade perdeu o ritmo, a cadência. Porque se antes o samba preenchia a casa com as armas de Jorge, mais tarde, as mesmas notas, dessa vez embaralhadas, trôpegas e amarguradas, espalharam vertigem.

Trouxe todos os animais do pátio para dentro de casa. Preciso espantar o orvalho avermelhado que mancha as paredes e o assoalho. O carinho vem do cisne, roçando seu bico na minha canela; o medo, da ovelha, girando ao redor de si mesma, como cão querendo morder o próprio rabo; a raiva do zebu, chifrando as portas e janelas trancafiadas; o definhamento, da cobra, paralisada, deixando o tempo esfarelar sua pele.

Não haverá, porém, tempo de renovação. Não há religião que explique nada e me traga algum sentido nessa hora. É o fim. Abrupto. Não espero nada diferente. E nenhuma dor superará o que meus olhos já apreenderam durante essa jornada. Nessa dura caminhada, sozinho, enfrentando desarmado aos espectros de todo o sempre, não sei quanto tempo ainda resisto.

O carinho morreu e adormece no bucho da raiva. O medo avançou sobre o tempo de definhar e foi picado. Arde em febre. Não há mais janelas nem portas e as paredes caíram sobre as últimas lembranças. Se ainda havia algum sonho o teto desabado encerrou esse ciclo. A raiva suplica, cai de joelhos e tomba ao meu lado.

Se o sorriso é a última faceta antes da derrocada, não sei. Mas é deliciosamente narcotizante.

Conto publicado hoje no Pioneiro.

terça-feira, 7 de março de 2006

como matar o tempo

o tempo de decompo tempo de decomposição
(Arnaldo Antunes)