Filme de botecoGrande parte da graça em assistir a um filme estranho com gente esquisita são os comentários na saída da sala de cinema. Depois da exibição de
Conceição, autor bom é autor morto, último concorrente da competição de longas-metragens do CineEsquemaNovo, o mais comum era ouvir: "ah, um filme assim eu também faria". Ou ainda, "nossa, véio...nonsense demais". E pra mim o melhor comentário: "tá aí um novo gênero: filme de boteco".
Gostei: "filme de boteco". Porque na verdade, a enxurrada de tramas paralelas decorre de uma conversa banal de um grupo de amigos reunidos em um bar e bebendo a cerveja Conceição. Papo vem, papo vai e cada um à mesa cita como deveria ser o seu filme. Só o simples fato de serem lançadas idéias sem o mínimo pudor nos remete a velha frase do Glauber Rocha: "Uma idéia na cabeça e uma câmera na mão". Mas não é tão simplista assim. Nem era só isso o cinema do Glauber, nem só isso o filme de uma verdadeira ação entre amigos, que reúne os diretores Daniel Caetano, André Sampaio, Guilherme Sarmiento, Samantha Ribeiro e Cyntia Sims, na concepção de
Conceição, autor bom é autor morto.
Também não é só um filme dentro de um outro filme. Aliás, são vários trechos do que viriam a ser filmes inteiros, se realizados em separado. Mas toda essa desconstrução narrativa, essa não-linearidade, essa quase esquizofrênica verborragia dos autores sentados à mesa e bebendo cerveja poderia ser só um emaranhado de situações desconexas. Mas não é. Tem ali o esmero de um roteiro que tece amarras consistentes entre tantas situações diferentes e personagens que a princípio pouco ou nada têm a ver um com o outro. Mas há uma pergunta corrente ao longo de todo o filme que une essas idéias, a princípio descabidas, e as dá sentido: "Se você fizesse um filme, como ele seria?".
É a responsabilidade pela obra dividida não só entre os amigos do boteco, mas, sobretudo, com o espectador. E já que o negócio era mesmo romper com a lógica de homogeneidade na narrativa, foram inseridas personagens da vida real, pessoas comuns que deram vazão à sua criatividade e disseram como seriam seus filmes. Essas cenas foram filmadas em preto e branco para contrastar de cara com a estética da parte ficcional de
Conceição. Menos uma delas, a de uma banda de chorinho e samba que acaba sendo incorporada à trama.
Outro momento de subversão ocorre quando uma das autoras-atriz desliga a luz. Cinema sem luz é a morte do cinema. Não é. E de certa forma, logo de cara esse breu lembra o apagão de
Velinhas, curta-metragem de Gustavo Spolidoro. Mas diferentemente de
Velinhas, em que após o apagão os personagens acendem velas para iluminar o ambiente, em
Conceição, a luminosidade vem de um cigarro de maconha. A cada nova tragada se acende uma luz em tom vermelho-alaranjado, que dá conta de não apenas sugerir o calor do cigarrinho em brasa, mas acaba iluminando o rosto dos personagens-autores.
O contraponto dessa discussão em torno da importância da imagem decorre em cenas plasticamente bem construídas, como nos tantos planos no cemitério, não só da perseguição ao fugitivo, mas também da personagem sem nome e reconhecível como mulher nua que é vista com um longo véu preto participando de um funeral. O fugitivo é um dos personagens centrais. Primeiro, porque é quem une, mesmo que de formas não-convencionais, as demais tramas. E segundo, porque ele se revolta contra o autor, que lhe atribui tão somente a sina de fugir. E não faz nada mesmo além de fugir. Porque na hora de dar cabo aos autores, entra em cena o homem da capa preta, interpretado pelo músico marginal Jards Macalé.
A essa diversidade poderia se classificar como a falta de estilo. Ou ainda, como o filme nos permite interpretar a partir do título: a morte do autor. Pode "morrer" a figura que assume a autoria de uma obra (e não é o caso de
Conceição), mas sempre haverá um autor. Mesmo que essa atribuição seja dividida entre uma ação entre amigos como essa, ou ainda seja feita a partir de pesquisa pelo Ibope. São autores os responsáveis por dar sentido a um punhado de idéias. Em Conceição o sentido é deturpar a regra, mas sem com isso, perder-se na confusão dos desejos dos personagens (da vida real ou fictícia).
Filme da mostra de longas-metragens do CineEsquemaNovo. Escolhido como melhor filme pelo júri popular.