quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

O CARA DA MALA*

Rio de Janeiro, final de tarde. Chuva fina e persistente.

Cena 1
Um cara de 30 anos entra no saguão do Aeroporto. Veste bermuda, camiseta e chinelo. Carrega uma mala daquelas que ninguém mais usa, modelo anos 70, bege. Parece atrasado. Gesticula muito, pede ajuda a quem encontra pela frente. Senta-se. Não permanece ali um minuto sequer. Levanta-se. Procura um daqueles televisores que informam os horários dos vôos. Esfrega os olhos no monitor, como se o piloto pudesse ouvi-lo. Sai falando sozinho, tropeçando e xingando a própria sombra. Some do saguão.

Cena 2
O mesmo saguão. Um homem de 40 e muitos anos puxa a fila. Cabelos compridos e encaracolados, camisa azul com flores pretas, calça de tergal de tom terra e óculos escuros, estilão Reginaldo Rossi. Atrás, vem seu filho. Mesmo cabelo, mesmo sorriso debochado, menos brega, mais hype, vestindo tênis Nike e mochila Adidas. Mais atrás ainda, vem uma mulher também de 40 e muitos anos, cara amarrada, cabelos longos e crespos, vestido abaixo dos joelhos, canelas finas e perebentas. Sentam-se. O filho abre a mochila e tira uma revista de mulher pelada. Antes de folhear a primeira página recebe um tabefe de mão fechada, da própria mãe.


Cena 3
Volta o cara de 30 anos. Ainda mais descabelado. Passou os últimos minutos varrendo o aeroporto rastreando o avião perdido. Ainda fala sozinho, cada vez mais alto, cada vez mais desesperado. Confere minuto a minuto o número do vôo, o destino, o portão e o horário (que foi pro espaço). Sacode a passagem como se fosse um lenço branco de súplica. Quase um último sinal de S.O.S daquele chato filme de náufrago. Seria engraçado, não fosse o manifesto sintoma de paranóia, quase esquizofrenia. Avoado, o cara sobe as escadas e desaparece.

Cena 4
A família Trapo, do guri tarado e do pai, sósia do Reginaldo Rossi, adormece no saguão. A mãe acorda e desajeitada levanta-se. Minutos depois, volta correndo, gritando como louca. A última chamada ressoa pelos corredores. É o avião quase partindo, e a mãe em desespero, sacolejando o filho e o marido. Ela corre, parecendo aqueles maratonistas de marcha atlética, tamanha desenvoltura. Assim que cruzam o portão 8, o quase-esquizofrênico reaparece, em segundo plano.


Cena 5
Paranóico, o cara quase-esquizofrênico, persegue uma aeromoça. Agarra-se às suas pernas, e de passagem em punho levanta uma das mãos ao céu. Deseja água como o herege que recebe a provação divina caminhando décadas pelo deserto escaldante. Cai e é atropelado pela mala de rodinhas da aeromoça. Sem largar da mala bege, estilo anos 70, levanta-se de sopetão e corre atrás de uma multidão que se dirige ao portão R6. Antes das crianças e dos anciãos, o quase-esquizofrênico tem preferência. É amarrado a uma cadeira de rodas, olhos e boca fechados, segue paciente pela esteira de carga.

Som de murmúrio. Fade out.

Fim.
*Conto de hoje, publicado no jornal Pioneiro.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

CASA VAZIA*

Passa da meia-noite. Janelas escancaradas e a brisa leve de uma noite de verão que anuncia chuva ocupa a casa vazia. Lá fora, meia dúzia de fogos de artifício rasgam o céu nublado. Aqui dentro, um doce ruído de ninar em versos suspirados, como se a Björk tivesse embalando o filho que ainda não tive. Na mesa, um javali de 100kg, com uma maçã reluzente cravada entre os dentes, reina soberano. Tombou na mata virgem com um único tiro. Certeiro e indolor. É o que me disse o vendedor, um muçulmano radicado nos Campos de Cima da Serra.

Sentei na ponta da mesa. À minha frente, além do javali de olhar cândido, quase de súplica, outros 11 pratos. Cada uma das cadeiras vazias representa uma pessoa em quem eu cravei um punhal. Nunca pelas costas, sempre de frente e com um desejo libidinoso de arrancar-lhe o coração. Aprendi com Maria Bonita, a rainha da caatinga e mulher de Virgolino Ferreira, o Lampião, a ficar à espreita, de tocaia. E com Antônio das Mortes, herói às avessas criado por Glauber Rocha, a não ter pena.

Guardo os onze corações puros, cheios de amor indelével, em caixinhas especiais, envidraçadas, e acomodadas carinhosamente no freezer. É doce a vertigem de aprisionar o sentimento mais arrebatador que se pode sentir, no auge do seu prazer. O primeiro "eu te amo", dito com o peito ardendo em febre e com os olhos cheios de lágrima de felicidade, não pode ressoar assim irriquieto e perder-se na profusão do desejo. Por isso, retribuo sempre o "eu te amo", e cravo no peito a adaga de prata.

Sorve sempre o amor em tinta vermelha. Acomodo no meu peito o coração que bate em desatino. Aos poucos, passa da euforia à cadência melancólica de uma música iluminada por coros femininos dialogando com harpas e violinos. É como a aurora de um novo dia, sem o peso da dúvida. Por que afinal eu deveria protelar a imortalidade do amor com a incerteza do amanhã, se mais cedo ou mais tarde o sentimento será maculado pelo ciúme, traição e desamor? Melhor o amor eterno guardado no congelador.

Antes de cravar os dentes no javali, um brinde ao amor. Já aos desalmados, que arrastam os dias com sua incapacidade de amar, a quem congelou seus corações antes do suspiro de "eu te amo", a quem amarga as noites em rituais de auto-flagelação e aos pobres mortais devotos do ódio, um cuspe seco no chão. Resta a esse bando de inúteis afogarem-se nesse cotidiano cinza e tenebroso. Às minhas adoráveis mulheres, a dádiva da imortalidade, do amor cândido, insuspeito de ciúmes porque transmuta-se logo após o primeiro "eu te amo".

Depois de saciar-me com a carne selvagem, dentes afiados, não resisti e voei pela janela à procura de um novo amor de ano novo.

* conto novo de ano novo.