sábado, 25 de abril de 2009

amém

Sentado no mesmo banco, na mesma praça, o velho assiste ao vôo dos mesmos pássaros de sempre. O velho mastiga um pedaço de asco e cospe migalhas de ironia. E nada mais parece fazer sentido. Não que algum dia tivesse feito, mas, bezandeus o velho tivesse ainda guardado os olhos numa tigelinha. Pelo menos isso. Mas não. A velha que dizia amar o velho preferiu trocar os olhos estragados do velho por um punhado de moedas.

Agarrado ao novo e velho testamentos, aos salmos espalhados pela casa, repetindo a exaustão cada versículo de cada apóstolo, o velho resiste. Acorda e antes mesmo de sentir o calor do sol lhe cortar a pele, põe a mão na cabeça da velha esposa e perdoa-a. Ungido pela fé em Deus e pelo retrato da felicidade cravado na parede, o velho perdoa a velha esposa. Aceitou a troca dos olhos da cara por um punhado de moedas porque sabia da serventia das moedas. A visão ele não perdeu, nem mesmo depois de entregar os olhos da cara à velha esposa.

Quem olha através da janela pensa que o velho anda louco. Talvez esteja cada dia mais e mais lúcido, a despeito dos outros. Porque ali fora, onde o silêncio é esfaqueado pelo ruído, onde o orvalho envenena as plantas, onde o sol queima as retinas, onde a carne apodrece antes do recolhimento do corpo, onde o tapa na cara aniquila o amor, os outros são só uns vermes. O velho não teme pela virulência dos outros. O velho perdoa. O velho ama ao Deus Pai Todo Poderoso e desfere o perdão. Mais nada.

Não precisa de nada mais pra viver. Nunca precisou. Mesmo quando ainda ostentava os olhos da cara, o velho sabia desvendar os mistérios dessa vida. Trancafiado dentro de casa parece orar não só pelo afastamento de toda maldade que por ventura tente chegar até a sua casa, como também deseja livrar a Terra de todo o mal. Mesmo abraçado à glória de Deus, o velho não salvou ainda a sua velha esposa. Ela continua sua quermece com o coisa ruim. Não satisfeita em pedir os olhos da cara ao velho marido, a velha esposa anda tentando roubar-lhe a língua.

A noite, quando velho dorme, a velha esposa aperta-lhe as mandíbulas e tenta a todo custo arrancar a língua. Com cara de nojo, como se tivesse lambendo as costas de uma cobra enlamaçada, a velha cospe na cara do velho marido aquela ânsia toda. Nas duas vezes em que isso aconteceu o velho levantou-se da cama, fitou-a firme nos olhos e desferiu frases da sagrada escritura. Nas duas vezes, a velha caiu em sono profundo logo após o sermão de perdão do velho.

E por amor a Deus o velho segue amando a velha esposa. Sabe que é questão de tempo a entrega da velha. O velho não quer a velha em seus braços, porque isso ele a tem desde os 13 anos. Desde que o pai dela jogou-a na porta da sua casa. Desde aquela noite nervosa e vazia em que o pai depois de espancá-la arrastou a menina pelos cabelos e deixou-a ali, como um saco de batatas, de bruços, embebecida em álcool, sangue e raiva.

Desde então a menina, que virou velha, truçida o marido como se fosse o pai fodido. E o velho perdoa, porque acredita na remissão dos pecados e na vida eterna. Amém.