sexta-feira, 24 de fevereiro de 2006

música de hoje

Karma Police
Karma police, arrest this man
He talks in maths
He buzzes like a fridge
He's like a detuned radio
Karma police, arrest this girl
Her Hitler hairdo is
Making me feel ill
And we have crashed her party
This is what you get
This is what you get
This is what you get when you mess with us
Karma Police
I've given all I can
It's not enough
I've given all I can
But we're still on the payroll
This is what you get
This is what you get
This is what you get when you mess with us
And for a minute there, I lost myself, I lost myself
Phew, for a minute there, I lost myself, I lost myself
For for a minute there, I lost myself, I lost myself
Phew, for a minute there, I lost myself, I lost myself

depois do primeiro coice não dói mais nada

Não quis nem saber. Chutou o queixo do velho que dormia no sofá da sala. Alguns dentes foram parar no aquário de peixes coloridos, cegos e alimentados com anfetanima. O urro do velho, engasgado com um pouco de sangue que corria sobre o carpete, acordou o resto da velharada. Um deles de pijama e chapéu de cowboy, quase caindo escada abaixo gritou:
– Pára! pra quê isso?
– Vocês não sabiam? Ele tem dois dentes de ouro – respondeu o agressor.
– Verdade?
– Se eu estiver mentindo que uma raio cai na cabeça do senhor, agora mesmo.
– Ai, deus me livre.
No sofá o velho, agora sentado, ainda cuspia sangue. Na boca dele poucos dentes, no chão nada de dente de ouro. No saguão da sala o bando de velhos e velhas caquéticos e histéricos gritava mais do que cego em tiroteio. Uma velha (foto acima) metida enfia os dedos na boca do velho à procura dos tão sonhados dentes de ouro.
– Abre a boca, porra.
– Uhuhiua...
– Não adianta tentar morder. Só sobrou uma meia dúzia de dentes – retruca a velhota.
Sem que ninguém percebesse um velho calado, alto, magro e de longos cabelos brancos se aproxima. Busca no fundo do peito o último suspiro e acerta o queixo do velho banguela com uma bengala. Sangue pra todo lado. O banguela rolou pelo chão. Como piranhas sedentas por sangue o bando de velhotes se lançou por cima dele. Ávidos pelos dentes de ouro a velharada desferia tabefes, puxões de cabelo e dedos nos olhos (e em outros lugares).
Quando uma velha quase careca conseguiu enfim espantar os outros para que saíssem de cima do corpo do velho, puderam certificar-se de que os dentes de ouro ainda estavam lá – INTACTOS na boca do coitado. Os dois dentes teimosos seguiam firmes e fortes. Eram dois molares. E nada – nada até agora, tinha abalado-os.
– Porra, mas que velho mais sovina! Quer levar para tumba esse ouro?
– Essa mula, nem pra ajudar os amigos na beira da morte...
– Calem a boca. Não adianta a gente ficar batendo-boca o que temos de pensar é num objetivo claro: como arrancar esses dentes dessa boca podre e fétida.
– Mas não adianta, se não saiu até agora não vai sair mais.
– Ah, vai sim!
– E se a gente jogar ele da sacada?
– Não, né, porque aí ele morre.
– E se um por vez, pularmos do sofá na cabeça dele?
– Cala a boca seu velho, não consegue nem sentar na privada vai conseguir pular do sofá. Pensa que é o Tarzan?
– Chega!!! Só tem um jeito. Podemos perder um pouco de ouro, mas ele não correrá risco de vida.
– Que idéia mágica é essa?
– Espera, eu já volto.
Dois minutos depois, o velhote gordo, barbudo e careca voltou. Na mão, uma faca Ginsu. Na cabeça uma idéia esdrúxula, mas jurava de pés juntos que funcionaria.
– Vamos serrar os dentes.
– Com essa faca? Tá louco? Não é por nada que injetam um monte de merda nessas veias caquéticas.
– Ô, cala essa boca, senão enfio essa faca no teu bucho.
– Calem a boca os dois. Ou vocês acham que a gente tem todo tempo do mundo?

microconto

Perdido. Quase eufórico.
Nada improvável.
Ontem, só ela disse 'eu te amo'.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006

microconto


Só o musgo, nada mais,
resolveria o problema
das minhas narinas.

Para Augusto Nesi, poeta e biólogo.

as memórias da casa

Som de piano. Melodia monocromática. Uma criança chorando. Na mesa da cozinha, o mamão verde amadurece antes do segundo acorde. As doze mulheres da casa ainda não acordaram. O sono profundo se encerra às 8h de hoje, na entrada da lua em Vênus. O choro é quase um sopro de trompete macio. Mistura-se às três notas do piano como a água quente em corpo dormente. O som se espalha pela casa.

7h59min. O sol avança sobre a porta. 24 olhos despertam. As mulheres da casa reviram-se sob os lençóis. É uma única cama, enorme, redonda, presa ao teto. Correntes fortes sustentam os sonhos das 12 mulheres. Uma a uma escorregam da cama e planam até tocar a planta dos pés no chão. Quando a última desce do pedestal o sol escancara portas e janelas. Os raios invadem cada peça, varrendo o mofo das paredes e o musgo do assoalho.

A criança nascera na primavera. Inicia o verão e ainda não sorriu. Os olhos albinos sorveram apenas lágrimas. Engatinha pela casa à procura de um peito-leito. As 12 mães divagam pela casa à procura do filho. Cantam um coro desajeitado, mas fiel à melodia do piano. O filho perdido no labirinto da casa pára de chorar. Na mesa da cozinha nada mais é o que parece. As frutas secaram e o café evaporou das xícaras.

Quase noite. O filho parido por 12 mães gêmeas ainda engatinha pela casa. O sol se põe e com ele o verão de um só dia adormece. As mães desoladas correm de peça em peça. Parecem abobadas como a revoada de urubus espantada pelo trovão da chuvarada que se aproxima. O vento forte bate janelas e portas antes escancaradas pelo verão. Uma rasga o vestido branco da outra. O piano cessa. De corpos nus e cândidos, tremem de frio abraçadas umas às outras.

Dentro dessa noite veloz, quase inútil, uma súplica rasga o peito. Um grito agudo, não desesperado, mas sutil e intenso como a melodia de um trompete tateando o resto do improviso. A mão quentinha do bebê enfim toca os pés gelados e esbranquiçados da mãe. A criança, apoiada na mãe, ergue-se. Ainda sob o frio e o breu da noite abraça as pernas da mãe. Ajoelhado, agarrado ao ventre da mãe, o filho já maduro, diz:
– Voltei, mãe. Por todo sempre...


Conto de hoje publicado no Pioneiro. Leia ouvindo o Tambong, do Vitor Ramil. Melhor ainda, pule direto pra música A ilusão da casa.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006

Caio F.

2 de Março

Chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas ameaçou e não chegou a ser, pelo que perdi de mim, pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanhã que não existe, pelo muito que amei e não me amaram, pelo que tentei ser correto e não foram comigo. Meu coração sangra com uma dor que não consigo comunicar a ninguém, recuso todos os toques e ignoro todas tentativas de aproximação. Tenho vergonha de gritar que esta dor é só minha, de pedir que me deixem em paz e só com ela, como um cão com seu osso. A única magia que existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso. A única magia que existe é a nossa incompreensão.


Fragmento de Lixo e Purpurina, escrito em 1974, em Londres. Caio Fernando Abreu morreu em 25 de fevereiro de 1996. Revista Almanaque (encartada no jornal Pioneiro de sábado e domingo) do próximo sábado traz matéria especial sobre o escritor.