sexta-feira, 3 de março de 2006

herança do pai traído *******

Um tiro. Só. Mais nada. Além do apêndice rasgado e da bílis lavando as coxas...nada mais. Um impulso renegando a existência. O véu cobrindo a face.

Antes do tiro. Ali na cama, os dois enrolados entre lençóis amarelados pelo tempo. Ela muda, corcunda e paranóica. Recolhia bolinhas de plástico e as guardava numa caixa. Depois tirava-as e espalhava uma por uma pela cama. E assim seguia, entre dias e noites como se pudesse afastar o medo da ausência. Ele duro, carne putrefata, olhos esbugalhados.

Cortina balançando, voando alva e pura, entrando e saindo da janela, indo e vindo pra espalhar a boa nova. Ele morto, ela louca. Nas paredes do quarto escritos entre rabiscos – tudo em sangue, pra não sumir depois da demolição. Tudo seria lindo, não fosse o sermão das velhas em romaria gritando e gemendo uns versos tresloucados.

O tiro rasgou a porta. Era noite. Ela com a boca no falo. Ele deitado sorvendo o prazer. O pai traído. A mãe acariciando o filho cego, surdo, mudo e paralítico. Pau mole lambuzado de sangue e bílis. E a mãe seguia o ritual demente. De pau mole na boca sentiu o filho esfriar. Devolveu-lhe o sangue com um beijo nos lábios. A mãe espalhou as bolinhas de plástico pela cama.

E nasceu o dia. E mesmo depois da morte do filho não havia vida sequer nos pulsos da mãe. Marteladas na porta. Silêncio. Aos poucos, vagarosa como a sombra da morte, um pouco d'água entrava por debaixo da porta. A água seguiu subindo até o entardecer. Lavando o sangue embevecido nos lençóis, a angústia, a febre, os sermões e a mão que balança o berço. Tudo debaixo d'água.

A água alcançava a altura da janela e corria parede abaixo manchando a tinta branca. Uma corredeira suja, fedorenta, amarga e venenosa. A mãe não suportou e mergulhou. Fechou os olhos, ouviu um coro de björks tristes e melancólicas, e deu adeus. O filho não ouviu. O corpo ganhou escamas, braços e pernas viraram nadadeiras. Ela seguiu corredeira abaixo. Rastejou pelo cordão da calçada e vazou pelo bueiro.

O filho acordou dois dias depois. Corpo envolto em tripas de porco, balançava num balanço estendido na copa de uma árvore encravada num bosque de fadas sem asas. Acordado, flutuou e foi acomodado numa cama de flores amarelas e perfumadas de campo. Recebeu a bênção de um unicórnio de chifre serrado e adormeceu.

Acordou na mesma casa. Paredes lavadas, perfume de gardênia. Levantou-se da cama e viu-se à imagem e semelhança da mãe, mas com pênis – herança do pai traído.

******* Republicado aqui depois que recebi um presente, a ilustra do Pablo Perini. Trimassa. Obrigado Pablo. Pode enviar mais.

águas de março

E tudo isso
Foi no mês que vem
Foi quando eu chegar
Foi na hora em que eu te vi
(Vitor Ramil, em Foi no mês que vem)


Deixei trancado, ali, atrás da porta do quarto, um velho baú. Desci lentamente os degraus da escada. Nas paredes retratos que o tempo jamais apagará, mesmo que a minha lembrança continue rasgando cena por cena. Picotando essa história até eu não poder mais reconta-la. E não sei se o que sinto é saudade ou é mais um delírio passageiro da minha vaga memória. Memória despedaçada, desperdiçada nessas últimas horas.

Vem da cozinha o único ruído da casa. Água escorrendo por sobre a louça da pia. E nem isso incomoda aos gatos que ainda dormem na soleira da janela. Lá fora, no pátio, folhas dançam silenciosas em redemoinho. Não há sol. Essa manhã fria de nuvens cinza e carregadas promete despejar as primeiras águas de março. Em tempo, porque é preciso varrer daqui uma certa lembrança de um momento singelo que tenta travestir-se de angústia.

E já não sei que sentimento é esse que bota. Há uma hora e de olhos ainda fechados, sabia. Já não sei mais. Não quero saber. Só sobreviver a essa vaguidão moribunda dessa manhã. Bem cedo o medo parecia só uma brisa de fim de verão. Mas não cessa de balançar aquele candelabro quebrado. Não reconheço o relógio pulsando na minha mão. Ou é o café gelado escorrendo do canto da boca ou a vertigem sorvendo quando deito na cama.

Passo as noites anotando em papéis a minha incapacidade de ordenar a vida. Fim. Ou memória desconstruída. Parte do desenlace. Porção de descontrole. Brevidade. Ou desapego da lembrança. Mas por que deixar sair às memórias da casa? Perdi. O tempo se esvai e eu ainda não encontro àquela menina de olhos azuis e cabelos cacheados. Febre. Não posso parar.

Um beijo me sopra ao ouvido. Lembro de Piazzolla e seu lirismo numa melodia cadenciada, mas sinuosa. Veio de repente pra dizer alguma coisa e logo se foi. Sem dizer, disse "eu te amo". O vento cessou. A casa virou pó. Só resta o velho baú e a única lembrança do amor que jamais esqueci. Parti sozinho para reencontra-la. Chove.

Às vezes adianta, às vezes atrasa. Conto publicado ontem no Pioneiro.

quinta-feira, 2 de março de 2006

mesmo depois da morte da cura

Estúpida ingenuidade acreditar na cura com The Cure. A cura não existe. É só um feitiço. A dor sempre supera o trauma. Sempre. Nunca um feitiço vai quebrar a dor. Nunca vai despedaçar a única certeza: o tempo se decompondo diante dos teus olhos. O tempo nunca cura nada; nunca dá adeus; nunca te espera na próxima esquina. O tempo corrói antes mesmo do nascimento e continuará por todo sempre até depois do dia em que morrer a cura.

Para Pi, parceiro de novas paranóias.

quarta-feira, 1 de março de 2006

amar é um jogo de armar

Sabe quando o amor te invade em sonho,
te lança pra fora da cama e te deixa
delirando assim que acorda?
Imagine tudo isso acordado.

Para Pati, amor da minha vida

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2006

não é piada

Mugnolini tentou tirar sarro da cara do Paulinho. Veja no que deu.

- Tu vai no show da Natiruts hoje?
- Não vai dar. Minha vó vai fazer sopa de agnoline lá em casa.

domingo, 26 de fevereiro de 2006

chove

É arenoso sabe. Ouvir isso tudo desse jeito. Corpo esquálido, olhar esquivo. E aquela voz rouca, lírica, aguda, sustentando a melodia triste. Encantadora, por isso triste. Pra melhorar tudo e sublinhar a delícia desse dia, chove forte. Pingos gelados que chegaram sem avisar. Nada de nuvens negras arrastando-se o dia todo. Só a chuva. Assim, sozinha. Intensa. Forte o suficiente pra bater portas e janelas.

Despenca o dia todo.