Estão por toda parte. São muitos, muitas vezes muitos, muito mais do que a gente pode imaginar.
Paulo Leminski, em De Frente pra Luz, do livro Gozo Fabuloso.
Paulo Leminski, em De Frente pra Luz, do livro Gozo Fabuloso.
Inverno. Neblina. Solitude de uma manhã desafinada. Casaco, toca e meia furada. Sem nada pra fazer saí de casa pra continuar sem nada pra fazer. Não fosse o tango arrastado, melancólico e um tanto apassionato, teria congelado de frio.
Gosto desse cheiro de cidade imunda. Gosto de ver gente tresloucada esfregando as feridas nas vitrines das lojas glamourosas. Tudo fede e, por isso, alucina. Não fosse assim, teria me mudado pro interior do interior pra plantar arbustos carnívoros. Mas sigo aqui, reinventando velhas histórias que meu avô contava pro boi dormir.
Não tem vista melhor do que o rebuliço de meia dúzia de cachorros sem dono lambendo o asfalto molhado e revirando o lixo da segunda-feira. Entre latidos e bengaladas pra afastar a cachorrada duas senhoras atravessam a rua de braços entrelaçados. Logo são tragadas pela neblina. Quem sabe mais a frente sejam expurgadas e reapareçam. Sinceramente, espero que não.
O primeiro ônibus da manhã larga uma revoada de gente sem dente. Todos cristalizados pela apatia do verso que nunca saiu do papel. Um só do bando fica plantado na encruzilhada. Conheço a figura. Não sei o nome, a profissão ou a origem, mas sei do paradeiro. Aquele velho boteco esquecido no meio do nada. Entra de mansinho e senta no terceiro banco. Não fala nada e logo acomoda a angústia com dois copinhos de uma bebida incolor.
Cruzo de uma rua para outra através de uma galeria escura e decadente. Um lunático grita o nome de Deus em vão. Veste terno escuro e gravata esguia. Tem uma cicatriz grotesca que corta parte a boca e termina no pescoço. De longe, se parece com Tom Yorke. Quem sabe com uma guitarra em punho e trocando os nomes dos personagens que cita à toa não fizesse mais sucesso.
É por causa dessa gente demente que tenho o prazer de acordar e sair por aí assobiando e chutando latinha de cerveja amassada. Não me importo mais com nada, nem com aquele hippie que todos os dias entoa os cânticos de Zé Ramalho. Porque a dádiva é o perfume da decomposição. Tempo que se esvai ralo adentro. E todos, sem exceção, só serão felizes na esquizofrenia.
Né, Leminski?