sexta-feira, 25 de abril de 2008

na hora em que eu te quis

Num dia desses tão cheios de tédio que nem o verme tem vontade de secar as tripas da vaca moribunda, resolvi guardar tudo num velho baú, trancá-lo no sótão e dar a chave pro meu filho brincar. No velho baú ficaram dias e noites intermináveis, parte do assoalho da sala, dois ou três gatos raivosos, a geladeira vermelha lascada, meu tênis de jogar futsal e seis ou sete roteiros de filmes que jamais serão realizados e, talvez por isso, virem obras primas depois das cinzas.

Na real eu nunca tive mesmo tanta vontade assim de tornar públicas minhas incertezas. Porque não é como ouvir Adriana Calcanhotto ou Vitor Ramil. Muito menos como carnear uma ovelha. Demora. A Adriana diz: "é o que o tempo leva". E como decidi não mais deixar as coisas espalhadas pela casa, senão não conseguiria mais chamar de casa esse espaço onde acomodo as coisas da minha vida, inclusive meu amor e meu filho, o sentido está em trancafiar. Tudo. Ou quase, porque o Vitor sempre repete: "O tempo é o meu lugar / O tempo é minha casa / A casa é onde quero estar".

Mas nem sempre é tão bom dar-se conta do inextinguível. É como se eu já soubesse o que insisto em esconder. Ou pior, não ver. Porque meu avô já dizia, antes de esquecer onde colocava o molho de chaves, "que o pior cego é o que não quer ver". E mesmo assim, sem saber onde colocava as chaves da casa o meu vô via sentido no mundo. Nesse mundo. No dele, pelo menos. E nem precisava se preocupar com a horta, nem se o mel escorria pela pia e dava de comer aos gatos quase caolhos de tão magros.

Então o que importa se os melhores filmes vão morrer trancafiados no velho baú? Porque na verdade os seis ou sete são o mesmo. Afinal, só existe um tipo de desejo. É que dentro dele a gente cria tantos outros confusos e difusos, que tudo parece ainda mais complexo do que é. Se pudesse comeria um roteiro por dia. Aos sábados sempre seria do Fellini, porque aproveitaria a narrativa pra sesta. Dormiria sonhando ser o piloto da motocicleta do Amarcord. Enquanto não chega o tempo de comer roteiro sigo aqui a zero por horta lambendo as tigelas de sopa de beterraba. E tem mais uma coisa, não é porque virei vegetariano que vou topar a mesma comida da Adriana. Comer Caetano, não.

Se for pra apelar prefiro carnear umas ovelhas que meu pai cria lá em Criúva. Mas só depois de estender os livros no varal e esperar pela chuva. Meu filho adora jogar futebol na chuva. Na semana passada, antes de trancafiar as coisas da casa no baú, assisti ele deslizar pela grama molhada e vibrar sozinho os gols feitos e perdidos. Porque a cada gol perdido, me dizia ele, o outro eu dele tinha uma nova chance de vencer a partida. Vi ele entrar pela porta da sala, encharcado de chuva e lama. Aí, a Adriana distante de todas as minhas incertezas, pegou o guri pela mão e me olhando disse: "vem vambora, que o que você demora é o que o tempo leva".

Eu demoro. Porque sempre confundo dias e noites. Enquanto escrevo me despeço de quem nem mesmo conheci; amo quem já desamou; esqueço de velhos amigos; e sepulto quem sequer nasceu. "E tudo isso / foi no mês que vem / foi quando eu chegar / foi na hora em que eu te vi". E mesmo sem te ver desisti de trancafiar as coisas da casa no baú. Porque ainda espero rever teu verso rasgando meu peito. Prometo até juntar os pedaços de tudo o que juntos quebramos e reconstruir. Ainda melhor. Mesmo sem manual. Só não esquece o guri no colégio. E vem jantar que hoje a noite tem música ao sabor de um tango muito antigo.

Vambora, amor?