quarta-feira, 11 de janeiro de 2006

quando tudo ainda faz sentido


Não morreu. Assistiu angustiado, empacotado como um pastel de feira, à derrocada do amor. Sentado no cordão da calçada, sentia o calor do asfalto queimar a sola dos pés e a maldição invadir os olhos.
Amou; comeu o pão que o diabo amassou; bebeu sangria nos chifres de um carneiro virgem; engoliu duas garfadas de feijão; rezou agarrado à imagem de Ogum; guardou a foto de Ana no bolso do casaco e adormeceu em sol a pino no passeio público. Nem em sonho, ninguém, sequer uma sombra, ou o espectro de uma alma desgarrada, beijou-o como se fosse o único.
Sozinho tentava antecipar o próximo verso, adivinhar a próxima nota, como se tudo fosse um desenho lógico, arquitetado na véspera do dia de finados. Mas era sábado e no sábado não sabia a hora certa, não sabia por qual das portas Ana sairia. Tirou o casaco, secou o suor do rosto com o punho da camisa, levantou num repente, beijou a medalhinha de São Jorge, bateu forte no próprio peito e caiu na gargalhada.
Dançou como se a rua fétida fosse um palácio. De braços abertos procurava alguém pra encaixar seu corpo. Requebrava uma valsinha meio samba que contrastava com a cadência da construção do outro lado da rua. Agarrou a primeira criança que viu brincando na calçada, beijou o rosto e disse, num sussurro: vai meu filho, ser guache na vida. Arrancou a camisa branca como se fosse mágico, abriu os braços e flutuou na contramão, rua adentro.
Um carro rasga o asfalto e avança o sinal. Girando, com os olhos cravados no céu, rindo e dançando, não ouve buzina, nem xingamento. Não ouve nada. Ninguém. De repente, uma freada brusca e uma batida forte. O carro lança-o ao chão. Levanta atordoado, sangrando, cambaleante. De olhos revirados sente o perfume de Ana. Sente uma mão acariciar o peito. Abre os olhos e nada. Ninguém. Só a marca de uma mão sobre o peito sujo de sangue.
Era Ana. Não sabia. Mas sentia.
Respira fundo, recosta-se num carro estacionado. Ainda pinga sangue da cabeça. Escorre pela testa e desliza sobre o peito. Aos poucos a marca da mão desaparece. Sem dizer nada, pede licença à multidão e segue descendo a ladeira. Casa depois de casa, os muros desaparecem e as árvores se decompõem. Como se tudo fosse sugado pela terra. Um buraco levando tudo em redemoinho.
Não morreu.

8 comentários:

Seu Menezes disse...

meu deus do céu, que que é isso, mugnol?!!! puta que pariu!
tu é foda, meu velho!
que baita post!!! tens razão, teu negócio é prosa...e que prosa!!!
saudações quase invejosas.

Anônimo disse...

Um atropelamento amoroso...que triste. Essa é uma homenagem a todos que já foram atropelados por esse sentimento. Muito lindo, diretor

Mugnolini disse...

o que é isso caro marco. fico feliz com teu elogio. sem inveja caro Ilunimado.

abraços
bom estar de volta

Anônimo disse...

olha a Ana aí outra vez...

Anônimo disse...

olha que sonhei contigo- dia 10- , depois de ver o documentário do vinícius no domingo
tu meio ferreira gullar, os cabelos finos...sorrindo satisfeito.
que coisa...

Mugnolini disse...

sempre o sorriso de gullar

Anônimo disse...

e não há Roda Viva que leve

Mugnolini disse...

nunca.