Navalha na carne
Delta do Nilo. Sol à pino. Pés descalços fervendo sobre a areia. O perdão não custa quase nada, mas o velho não se rende. Crava a bengala na areia fofa e arrasta o corpo. Lábios secos, olhos cravejados de raiva. O velho nunca quis nada além do afago, do sorriso, do beijo eternamente apaixonado. Sentado na varanda o velho ainda moço fitava o horizonte, vislumbrava as tardes de não fazer nada ao lado da mulher amada. Imaginava-se comendo pêras, nunca engolindo farpas.
Conheceram-se numa tarde de chuva. Vento forte de destelhar casas. Alice, menina de cabelos loiros e longos, pele branca e olhos verdes, translúcidos, corria pra lugar nenhum tentando se proteger da calamidade. Khalid, alto, forte, deparou-se com Alice numa das esquinas movimentadas do centro de Cairo. Olho no olho, Khalid e Alice, encharcados de chuva, sorriram. Nenhum beijo, nada. Só o silêncio da ternura. A quietude durou quase nada porque um carro buzinava enlouquecidamente.
Alice nem disse adeus, só entreolhou através dos cabelos molhados, sorriu e correu para o carro. Khalid reconheceu o amor em breves segundos de caos. Nos dias seguintes, enquanto os moradores e comerciantes recolocavam as coisas em ordem, Khalid passava as tardes à espera de Alice. Na mesma esquina. Alimentando o desejo de voltar a vê-la, com o mesmo sorriso e ternura, com a mesma graça. Um mês depois, Alice sai do mesmo carro daquela tarde chuvosa, estacionado no mesmo lugar.
Se fosse um filme a cena seria em câmera lenta com uma música de Tom Waits antecipando o encontro. Alice de óculos escuros, salto agulha, vestido esvoaçante, não parecia nada vulnerável. Khalid se aproxima. Alice baixa o óculos e por cima observa Khalid. Tira da bolsa uns trocados e entrega a Khalid.
– Por que essa merda de dinheiro? Eu te amo, não quero nada além de um beijo lascivo e interminável.
– Cala a boca, seu podre, mentiroso e moribundo – retruca Alice.
– Mas Alice, eu já disse que não sou mitômano!
Depois da queda, a foice. Num só golpe.
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