terça-feira, 8 de janeiro de 2008

CASA VAZIA*

Passa da meia-noite. Janelas escancaradas e a brisa leve de uma noite de verão que anuncia chuva ocupa a casa vazia. Lá fora, meia dúzia de fogos de artifício rasgam o céu nublado. Aqui dentro, um doce ruído de ninar em versos suspirados, como se a Björk tivesse embalando o filho que ainda não tive. Na mesa, um javali de 100kg, com uma maçã reluzente cravada entre os dentes, reina soberano. Tombou na mata virgem com um único tiro. Certeiro e indolor. É o que me disse o vendedor, um muçulmano radicado nos Campos de Cima da Serra.

Sentei na ponta da mesa. À minha frente, além do javali de olhar cândido, quase de súplica, outros 11 pratos. Cada uma das cadeiras vazias representa uma pessoa em quem eu cravei um punhal. Nunca pelas costas, sempre de frente e com um desejo libidinoso de arrancar-lhe o coração. Aprendi com Maria Bonita, a rainha da caatinga e mulher de Virgolino Ferreira, o Lampião, a ficar à espreita, de tocaia. E com Antônio das Mortes, herói às avessas criado por Glauber Rocha, a não ter pena.

Guardo os onze corações puros, cheios de amor indelével, em caixinhas especiais, envidraçadas, e acomodadas carinhosamente no freezer. É doce a vertigem de aprisionar o sentimento mais arrebatador que se pode sentir, no auge do seu prazer. O primeiro "eu te amo", dito com o peito ardendo em febre e com os olhos cheios de lágrima de felicidade, não pode ressoar assim irriquieto e perder-se na profusão do desejo. Por isso, retribuo sempre o "eu te amo", e cravo no peito a adaga de prata.

Sorve sempre o amor em tinta vermelha. Acomodo no meu peito o coração que bate em desatino. Aos poucos, passa da euforia à cadência melancólica de uma música iluminada por coros femininos dialogando com harpas e violinos. É como a aurora de um novo dia, sem o peso da dúvida. Por que afinal eu deveria protelar a imortalidade do amor com a incerteza do amanhã, se mais cedo ou mais tarde o sentimento será maculado pelo ciúme, traição e desamor? Melhor o amor eterno guardado no congelador.

Antes de cravar os dentes no javali, um brinde ao amor. Já aos desalmados, que arrastam os dias com sua incapacidade de amar, a quem congelou seus corações antes do suspiro de "eu te amo", a quem amarga as noites em rituais de auto-flagelação e aos pobres mortais devotos do ódio, um cuspe seco no chão. Resta a esse bando de inúteis afogarem-se nesse cotidiano cinza e tenebroso. Às minhas adoráveis mulheres, a dádiva da imortalidade, do amor cândido, insuspeito de ciúmes porque transmuta-se logo após o primeiro "eu te amo".

Depois de saciar-me com a carne selvagem, dentes afiados, não resisti e voei pela janela à procura de um novo amor de ano novo.

* conto novo de ano novo.

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