sábado, 22 de março de 2008

Paul e os irmãos Coen na terra do sol

O melhor duelo cinematográfico sob a terra árida é o de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964). Nesse filme, o baiano Glauber Rocha (1939-1981) revela a vida desgraçada do sertão, mostrando de beatos a matadores de aluguel. Mas que raios "Deus e do Diabo na Terra do Sol" tem a ver com os oscarizados "Sangue Negro" e "Onde os Fracos Não Têm Vez" (vencedor de quatro estatuetas, incluindo melhor filme)?


- Tudo! Absolutamente tudo - diria o cineasta brasileiro, em tom debochado.

No filme de Glauber, Santo Sebastião e Corisco representam Deus e o diabo. Na cola deles, segue Antônio das Mortes, uma figura sinistra. Quem viu "Onde os Fracos Não Têm Vez", dos irmãos Coen, já matou a charada. Esqueça a metáfora religiosa e rebatize os personagens. Então teríamos Anton Chigurth (Javier Bardem) como Antônio das Mortes. Ambos são impiedosos e cumprem o que prometem. Sem dó.

No outro extremo, "Sangue Negro", de Paul Thomas Anderson, revela a epopéia de um zé-ninguém que arrisca a vida para enriquecer. Daniel Plainview (interpretado por Daniel Day-Lewis, Oscar de melhor ator) passa o filme todo duelando com o jovem pastor Eli Sunday (Paul Dano, de "Pequena Miss Sunshine"). Rapidamente, dá pra identificá-los como Corisco e Santo Sebastião, o diabo e Deus, respectivamente. No entanto - e aí reside o grande trunfo de "Sangue Negro" - , Daniel e Eli mostram-se ao mesmo tempo homens canalhas e bem intencionados, ainda que sutilmente, e por isso fica difícil rotulá-los.

A situação é totalmente diferente de "Onde os Fracos Não Têm Vez", em que Llewelyn Moss (interpretado por Josh Brolin) é o tempo todo o homem de bem que pegou um dinheiro que não era seu, e Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones), um xerife à beira da aposentadoria, que retarda o que pode as investigações para sair de fininho e tranqüilo, rumo aos dias intermináveis de lazer. Sem esquecer, é claro, de Anton, matador de aluguel sempre pronto a riscar do mapa gente sem princípios. Porque ele, ao contrário dos demais personagens, é homem de palavra. E o rastro de sangue que deixa para trás confirma isso.

No filme de Glauber, Antônio das Mortes acredita que ao eliminar Deus e o diabo, enfim o sertão será livre. Pensamento descaradamente anarquista. E aqui reside a divergência entre Glauber, os irmãos Coen e Paul Thomas Anderson. "Sangue Negro" e "Onde os Fracos Não Têm Vez" são filmes individualistas (para não dizer capitalistas) até o pescoço. Não há sequer uma luz de coletividade. Daniel Plainview, o sedento por petróleo, quer enriquecer a todo custo, assim como Eli, o pastor que deseja aumentar seu rebanho. Ou ainda Llewelyn Moss, que escapa como uma galinha de um lobo para ficar com um dinheiro que não é seu.

As duas produções de Hollywood caem na armadilha de beber da fonte inesgotável de Glauber Rocha, autor do clássico "Deus e o Diabo...", produzido há quase 50 anos. Mas como, se é improvável que Paul Thomas Anderson e os irmãos Coen tenham assistido ao filme de Glauber? Isso Freud não explica, mas Carl Jung, sim. O psiquiatra suíço diria que se trata de um rico exemplo de como o inconsciente coletivo conecta pensamentos aparentemente dispersos. E pensar que toda essa ficção tem lá seu fundamento com a realidade parece um absurdo. Mas, no cinema, é assim mesmo. É quase realidade, mas sempre invenção.

texto de hoje na revista Almanaque.

Um comentário:

Anônimo disse...

no cinema é realidade. na vida é invenção.


não vi nenhum desses.masss
ontem assisti "sopro" do Cao Guimarães e Rivane - não sei o sobrenome - como diria axuxa "muuuito bonito".