quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006

as memórias da casa

Som de piano. Melodia monocromática. Uma criança chorando. Na mesa da cozinha, o mamão verde amadurece antes do segundo acorde. As doze mulheres da casa ainda não acordaram. O sono profundo se encerra às 8h de hoje, na entrada da lua em Vênus. O choro é quase um sopro de trompete macio. Mistura-se às três notas do piano como a água quente em corpo dormente. O som se espalha pela casa.

7h59min. O sol avança sobre a porta. 24 olhos despertam. As mulheres da casa reviram-se sob os lençóis. É uma única cama, enorme, redonda, presa ao teto. Correntes fortes sustentam os sonhos das 12 mulheres. Uma a uma escorregam da cama e planam até tocar a planta dos pés no chão. Quando a última desce do pedestal o sol escancara portas e janelas. Os raios invadem cada peça, varrendo o mofo das paredes e o musgo do assoalho.

A criança nascera na primavera. Inicia o verão e ainda não sorriu. Os olhos albinos sorveram apenas lágrimas. Engatinha pela casa à procura de um peito-leito. As 12 mães divagam pela casa à procura do filho. Cantam um coro desajeitado, mas fiel à melodia do piano. O filho perdido no labirinto da casa pára de chorar. Na mesa da cozinha nada mais é o que parece. As frutas secaram e o café evaporou das xícaras.

Quase noite. O filho parido por 12 mães gêmeas ainda engatinha pela casa. O sol se põe e com ele o verão de um só dia adormece. As mães desoladas correm de peça em peça. Parecem abobadas como a revoada de urubus espantada pelo trovão da chuvarada que se aproxima. O vento forte bate janelas e portas antes escancaradas pelo verão. Uma rasga o vestido branco da outra. O piano cessa. De corpos nus e cândidos, tremem de frio abraçadas umas às outras.

Dentro dessa noite veloz, quase inútil, uma súplica rasga o peito. Um grito agudo, não desesperado, mas sutil e intenso como a melodia de um trompete tateando o resto do improviso. A mão quentinha do bebê enfim toca os pés gelados e esbranquiçados da mãe. A criança, apoiada na mãe, ergue-se. Ainda sob o frio e o breu da noite abraça as pernas da mãe. Ajoelhado, agarrado ao ventre da mãe, o filho já maduro, diz:
– Voltei, mãe. Por todo sempre...


Conto de hoje publicado no Pioneiro. Leia ouvindo o Tambong, do Vitor Ramil. Melhor ainda, pule direto pra música A ilusão da casa.

6 comentários:

Anônimo disse...

Imaginei...
Lindo...beijos

Mugnolini disse...

grácias...
veria esse filme?

Anônimo disse...

Com certeza*

Anônimo disse...

lindo. pesado. gostei.

Mugnolini disse...

grácias

Anônimo disse...

que coisa, juro que já pensei em ter minha cama presa ao teto por correntes. ( que delírio )