quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

até o anjo foi pro inferno

Ana desistiu. Ana se entregou. Ignorou o verso, o beijo e trancafiou numa caixinha as nossas coisas. Não sobrou nada. Nem o anjo lascado de asas quebradas esquecido numa gaveta. Agora fica aquela sensação de tão longe, mas tão perto. Aquela vertigem. Mesmo com a casa vazia e de olhos cerrados a ausência pulsa, invade o corpo e arranca carícia por carícia, lembrança por lembrança.

Tem dias que nem dói. É como se nada tivesse acontecido. Como se o gato ainda rosnasse na soleira da janela. Tudo continua ali, presente, mas não era como antes. Porque sempre haverá dias cinzas pra devolver a dor. Chove na cadência de um piano lírico e louco, cacofônico, não desafinado. A memória reconstrói e destrói cenas em frações de segundos. Num piscar de olhos dezenas de pessoas abarrotando a casa, lisérgicas, dançando no escuro. Em seguida, silêncio, água escorrendo do telhado pela parede, encharcando o assoalho.

Trocaria todo o tempo que tenho daqui até a eternidade por uma aparição divina de Tom Waits cantando Everything Goes To Hell. Não hoje, mas ontem. Antes da revoada de Ana. Antes das trovoadas e dessa chuva descontínua. Tom Waits me lembra do avô caolho, demente, quase sem dentes. Sentado na cadeira de balanço inspira o resto do tempo e expira fragmentos dessa vida que ainda persiste.

Ana desistiu. Antes da chuva cessar. Antes do beijo áspero de Tom Waits. Antes da pergunta do avô. Eu nunca quis saber. Nunca perguntei nada. E deixei bem claro que também não queria uma pergunta sequer. Só amor. Mais nada. Ah, e tesão, claro. Ana não disse nada. Arrancou tudo da casa vazia. Todo sentimento do mundo. Sem dizer nada, disse adeus. Até o anjo foi pro inferno. Eu não. Sigo agarrado ao piano de Tom Waits.

Ainda chove. A água invade a casa e ocupa essa ausência. A lembrança morreu na demência do avô. Depois do fim da chuva e da troca de pele, quem sabe eu volte a respirar. Ana, não. Preferiu a vertigem através da janela.

Conto de hoje no jornal Pioneiro.
O título no jornal ficou Sempre haverá dias cinzas.
Mas na real o melhor título é o que está postado aqui.

4 comentários:

Anônimo disse...

... e a intensidade do teu escrever e o delirio de um flamenco a flor da pele. Ti leio.

Anônimo disse...

???

Anônimo disse...

eu adoro a Ana. ela volta, né.

Mugnolini disse...

sempre volta.