sexta-feira, 3 de março de 2006

águas de março

E tudo isso
Foi no mês que vem
Foi quando eu chegar
Foi na hora em que eu te vi
(Vitor Ramil, em Foi no mês que vem)


Deixei trancado, ali, atrás da porta do quarto, um velho baú. Desci lentamente os degraus da escada. Nas paredes retratos que o tempo jamais apagará, mesmo que a minha lembrança continue rasgando cena por cena. Picotando essa história até eu não poder mais reconta-la. E não sei se o que sinto é saudade ou é mais um delírio passageiro da minha vaga memória. Memória despedaçada, desperdiçada nessas últimas horas.

Vem da cozinha o único ruído da casa. Água escorrendo por sobre a louça da pia. E nem isso incomoda aos gatos que ainda dormem na soleira da janela. Lá fora, no pátio, folhas dançam silenciosas em redemoinho. Não há sol. Essa manhã fria de nuvens cinza e carregadas promete despejar as primeiras águas de março. Em tempo, porque é preciso varrer daqui uma certa lembrança de um momento singelo que tenta travestir-se de angústia.

E já não sei que sentimento é esse que bota. Há uma hora e de olhos ainda fechados, sabia. Já não sei mais. Não quero saber. Só sobreviver a essa vaguidão moribunda dessa manhã. Bem cedo o medo parecia só uma brisa de fim de verão. Mas não cessa de balançar aquele candelabro quebrado. Não reconheço o relógio pulsando na minha mão. Ou é o café gelado escorrendo do canto da boca ou a vertigem sorvendo quando deito na cama.

Passo as noites anotando em papéis a minha incapacidade de ordenar a vida. Fim. Ou memória desconstruída. Parte do desenlace. Porção de descontrole. Brevidade. Ou desapego da lembrança. Mas por que deixar sair às memórias da casa? Perdi. O tempo se esvai e eu ainda não encontro àquela menina de olhos azuis e cabelos cacheados. Febre. Não posso parar.

Um beijo me sopra ao ouvido. Lembro de Piazzolla e seu lirismo numa melodia cadenciada, mas sinuosa. Veio de repente pra dizer alguma coisa e logo se foi. Sem dizer, disse "eu te amo". O vento cessou. A casa virou pó. Só resta o velho baú e a única lembrança do amor que jamais esqueci. Parti sozinho para reencontra-la. Chove.

Às vezes adianta, às vezes atrasa. Conto publicado ontem no Pioneiro.

4 comentários:

Anônimo disse...

Sábado, enquanto chovia, ouvi mais de uma vez essa música, o pianinho maluco e encantador,fora do tempo...(Ou no seu tempo preciso)E por isso lindo,como a letra, como o teu texto.

Anônimo disse...

Como falei...algo em mim, não o Alzheimer, "E não sei se o que sinto é saudade ou é mais um delírio passageiro da minha vaga memória."

Anônimo disse...

clarissa aderiu ao pianinho maluco, pianinho frenético, pianinho de satã e outras denominações.

:)

Anônimo disse...

lindo texto, lindo.