quinta-feira, 16 de março de 2006

por amor, ana ceifou a dor

De tanto eu te falar você subverteu
o que era um sentimento e assim
Fez dele razão... Pra se perder no
abismo que é pensar e sentir.
(Rodrigo Amarante, em Sentimental)

Deitado no pátio. Não um pátio qualquer, mas o meu pátio, onde guardo as minhas lembranças. As memórias se esvaem como a chuva que penetra terra a dentro e some na vaguidão. Mas se recordar é viver, insisto. Silencioso, ora afoito, ora lânguido, mas persisto. Há cinco dias, às 5 horas da tarde, encaro um ritual nada convencional. Não alivia a dor, não devolve a calma, não traz ao peito a mão que ardia em desejo. Mas insisto.

Deito à sombra de uma árvore. Espero paciente o vento derrubar as folhas secas. Dançam no ar e caem sobre o meu corpo. No último resquício do dia, antes da lua invadir o céu, meu corpo todo é coberto. Folha sobre folha, embaralhadas pelo tempo. Entra a noite. Eu ali, corpo entregue à decomposição. O silêncio é quebrado pelo som das formigas transitando entre meu corpo e as folhas secas.

Não interrompo o ofício das formigas, porque elas ajudam a acelerar meu percurso. Rasgam as folhas antes do tempo real de decomposição. Cada picote, mesmo que minúsculo, abranda minha raiva, minha angústia, minha incapacidade de domar o tempo. Porque o único remédio para o desencanto é rasgar o ventre e silenciar o coração. Mesmo quando acaba, mesmo que há cinco dias isso venha se repetindo e parece nunca se aproximar do fim, ainda sinto as formigas trabalhando. Sorve um punhado delas pelas narinas.

Amanhece e o ritual precisa ser estancado, porque mesmo ávido pela decomposição do tempo, é preciso respeitar o limite do esmorecimento. A purificação do corpo em putrefação precisa de perdão. Se até a alma mais carola, se entrega à remissão dos pecados, porque um corpo como o meu, que jamais esquivou-se dos encantos do amor, mesmo àquele malfeito, sob a luz vermelha, não precisaria de um ritual de perdão?

Sexto dia. Olhos cinzas, embotados de lágrima, fitando o nada através da janela. Nada além de um punhado de folhas secas dançando num canto do pátio. Silêncio. Por amor, Ana ceifou a dor.

Conto de hoje publicado no jornal Pioneiro.

8 comentários:

Anônimo disse...

Estas Anas....

Anônimo disse...

ana se enterra
se entrega
se acoberta


na terra.

Anônimo disse...

a ana é massa. e aquele roteiro?

Anônimo disse...

silêncio.
.
.
.
gosto dos teus contos.

Mugnolini disse...

grácias

...

roteiro? qual?

Mugnolini disse...

grácias

...

roteiro? qual?

Anônimo disse...

um que tinha a ana. antigo. as músicas de abre também estão legais ;)

Anônimo disse...

lindo!