O tio Valter não teve carro. Mas conhecia todos os carros que via. Quanto mais velhos, melhor. Nunca teve o prazer de cruzar a Rota 66 num Cadilac conversível. Tampouco assistiu western em drive in. Jamais pensou em fugir de casa e virar piloto de alguma dessas máquinas velozes. Nem virou policial para perseguir bandidos e foras da lei. Tio Valter sempre foi de carona.
Num dia desses, depois de uns meses de insistência, eu e a Pati levamos o tio Valter no Museu do Automóvel, em Canoas. O importante não era só chegar lá e ver os carros antigos. O prazer do tio Valter era andar de carro. Sentado no banco de trás, com o cinto de segurança bem apertado, falava de tudo o que tinha mudado entre Porto Alegre e Canoas. Jorrava imagens do baú de memórias do Tio Valter.
O carro deslizando sobre o asfalto quente do meio-dia não era tão rápido quanto o passado que o tio Valter reconstruía. Tio Valter tinha o pé no passado. Tinha muita saudade. Não só dos lugares que mudaram, não só do glamour dos anos 40 e 50. Tio Valter sentia saudade das pessoas com quem conviveu. Em cada recordação citava os personagens mais importantes. Todos tinham nome e sobrenome. Não raro, tio Valter citava até a roupa que as pessoas vestiam na ocasião.
Tio Valter tinha saudades até das pessoas com as quais não conviveu. Sabia tudo sobre a vida das divas do cinema americano. Tio Valter, ensinou assim, mesmo sem querer, que o baú de memórias é a melhor parte da vida. Não só para alimentar boas conversas de bar. Porque quem tem histórias para contar vira o protagonista de em qualquer lugar. Mas sempre que abriu esse baú, me senti mais próximo do tio Valter.
Porque não nasci tendo o tio Valter do meu lado. Ele foi daqueles parentes que a gente chama de emprestado. Não é de sangue. Mas depois de ouvir tantas histórias e me sentir dentro delas, passei a ocupei um espaço importante no baú de memórias do tio Valter. Nada mais justo, então, que ele passe a habitar as minhas memórias. Tudo será passado a partir de hoje. Mas um passado tão vivo e inquieto como sempre foi o tio Valter.
* crônica de hoje do jornal Pioneiro
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário