O relógio na cabeceira; na varanda, o velho trôpego despenca da escada; no varal, a roupa manchada de sangue e bílis; no quarto, a mãe dá a última ordem da noite; na cozinha, o pão de milho vira farelo; no pátio, nada, ninguém, só o ruído do balanço enferrujado, sozinho ao vento.
- Depois de um certo tempo nada mais faz sentido.
A mãe sumiu; o ambulante serra a mesma mesa de vime; o verme almoça em silêncio; a menina de olhos alvos lava a tristeza do rosto; o pastor recolhe as pedras do caminho; o bêbado deposita o medo no altar da solidão; três dias mais sem leite e o gato definha.
- Uma noite sem vertigem suplantaria a dor.
Saudade das folhas secas, de colher as folhas secas e passar as tardes esfarelando-as; pena do vô, descascando a própria pele, tirando a mesma casca da velha ferida; vontade de sair correndo pelo campo, aquele gramado verdinho; vontade de esfolar os joelhos no gramado molhado.
- Essa noite não. Não assim, por favor.
Alguma coisa rompeu a vidraça; na madrugada ensandecida, a ordenha da vaca terminou antes do tempo; nenhum sinal de pedra, bola de futebol da molecada, muito menos as bolinhas de gude do filho da empregada; essa coisa atravessou a sala, a cozinha, e foi se alojar na subida da escada; um tiro, certeiro, no olho do vô; no olho do porta-retrato do vô.
- Só não esquece do amor, ali parado na esquina.
No baú resta apenas aquele velho osso esfarelento; escapa da memória o sonho; ninguém tem coragem de devolver a ilusão da casa; as paredes revelam o mofo, o cheiro do tempo em decomposição; o sermão do pai desmorona antes da madeira; o cupim só não devorou o velho baú.
Perdi o vô na estação; corre pra casa antes que a tarde caia; morde a língua se o desejo não arde em brasa; a raiva ainda há de corroer o amor; alguém tira essa lesma da mesa de jantar, porque o velho vai sentar; tira o verme de perto do velho antes que ele o devore; antes que o velho volte a ser o verme em putrefação, coloquem o osso do velho de volta ao baú.
- Só mais uma gota de endorfina, por favor.
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