quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

MALDITA UTOPIA

Onde tiver arte haverá a maldita sombra da utopia. E se não for assim, não será arte. Será produto que se vende no supermercado, tipo sabonete, pra limpar o que quiser, menos ampliar os sentidos. E sem essa de elite e baixo clero. Arte é arte, independentemente da geografia, escolaridade e circunstância. Não é porque a obra foi uma encomenda que terá menor relevância. Ou ainda, ser desprezada porque não tem vínculo algum com as tradições do lugar onde foi concebida. Arte é quase sempre cisão e quase nunca reconstrução.

Lógico que esse é um papo filosófico. E se tiveres receio de continuar por medo de sentir-se seduzido pelos argumentos que seguem, podes descer e procurar o trem que vai de volta à Terra do Nunca. Podes voltar pra caverna e ler aquele pocket sobre o Platão. Isso não vai doer nada. Aliás, todo regresso é tranqüilo, nada traumático, e podes ter certeza de que aquele velho ancião que senta na história da cidade não vai escrever que foi por medo de avião que decidiste voltar de trem.

Maldita utopia. E bendita cidade que tem tudo ainda por fazer. Pipocam por aqui microorganismos ávidos por almoçar, jantar e embebedar-se de arte. Sei de gente que engordou 100 quilos em um ano só consumindo arte. Gente que despreza todo o tipo de dieta e só não vai a museu na segunda-feira porque está fechado. Outro não pára de acumular versos dissimulados de poetas forasteiros que fizeram dessa cidade a sua morada. Pena que nem sempre a oferta de arte dê conta de alimentar a tantos famintos.

Agora veio um tal suprimento extra. É um fome zero enriquecido de cultura. Não li a composição das embalagens de comida, mas dizem que agora vai ser possível engordar a gregos e troianos. Não duvido. Hoje tem ração transgênica capaz de fazer boi virar zebu do dia pra noite. Só não vi fazer vaca virar girafa. É o tal dilema da tecnologia genética. É possível um quadrúpede ser mais forte, mas não vi ainda fazer ele enxergar além da cerca de arame farpado. É outro prisma e, aí, vem denovo a sina da maldita utopia.

Mas e o que fazer com quem não tem a mínima sede de arte? A quem interessa mais o produto interno bruto do que a fruição de uma obra, criação de alguma mente insana dessa cidade? O cara da economia, que injeta dinheiro na cidade, pode sentir-se participante desse processo com o que ele tem de melhor: o capital. Não precisa gostar, nem entender, basta patrocinar. Basta alimentar com dindin uma horda de dementes desconectados com a realidade produzindo filmes dia e noite, sem pausa para café ou banho.

Lógico que é uma maldita utopia. Porque os donos dos cascalhos da cidade, armados de pudor e hipocrisia, não cederão aos encantos da arte. Nunca. A cena é tão carregada de asco como transar com um alien. E descabida, como temperar a salada com talco para os pés. Enquanto isso, cresce o produto interno bruto com uma leva de sabonetes que saem das fábricas com carimbo e embalagem de arte. Maldita utopia a da lei CONTRA o incentivo fiscal de tanta porcaria.

crônica desta quarta-feira, no Pioneiro.

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