quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Joãozinho e o mordomo

Tem gente que sente calafrios só de imaginar-se assistindo a um "filme cabeça". O que dizer então de Santiago, que não é só um filme, mas a reflexão de um diretor sobre sua obra? E não uma obra qualquer, mas inacabada. Um projeto iniciado em 1992, mas só retomado em 2005, por não saber muito bem o que fazer com tantas horas de entrevistas, tantos olhares difusos, tamanha insensibilidade de não perceber nos pequenos gestos de Santiago, o filme ali, construindo-se diante do diretor.

João Moreila Salles, diretor de Santiago, não é só irmão de Walter Salles, o mais famoso cineasta da família. João é um dos melhores documentaristas brasileiros. Autor de Notícias de uma Guerra Particular, Nelson Freire e Entreatos. Faz boa dupla de ataque, marcando gols de placa, ao lado de Eduardo Coutinho (Edifício Master e Jogo de Cena). Santiago era o mordomo da Casa da Gávea, mansão do pai de João. A princípio é um filme sobre um único personagem. João vai então ao apartamento de Santiago, e revela, em preto e branco, um pouco da sua intimidade.

Mas sutilmente João acaba por trazer à tona mais um personagem, silencioso, nem por isso menos atormentado, a Casa da Gávea. Também em preto e branco mostra a casa vazia, os móveis empoerados. E nessa inconstância, João nos entrega o jogo. A narração, em primeira pessoa, acaba por revelar as dúvidas, as contradições e as impossibilidades de montar o filme, reorganizar as tantas cenas filmadas e quase esquecidas pelo tempo. João diz que Santiago o fez voltar à casa da família e reencontrar as imagens daqueles tempos de menino, nadando na piscina.

Todos os planos do filme mostram Santiago mais distante, nunca em close. Lá no fim vamos entender que os planos são todos referenciais à obra do cineasta japonês Yasujiro Ozu. E João diz que só em 2005, quando voltou a montar o filme percebeu que ele, João, nunca deixou de ser o filho do dono da casa, e Santiago, nunca deixou de ser o Mordomo da Casa da Gávea. E foi por puro maniqueísmo de João que Santiago distanciou-se. Puro preciosismo, incapacidade de entrar na trilha aberta por Santiago. Como no momento em que Santiago quer dizer algo importante a ele, e Jão não quer escutar.

_ Joãozinho, Joãozinho...eu queria dizer que faço parte de um grupo de seres malditos.

_ Não, isso não Santiago...

Nem a câmera registrou o ato falho. Só ficou o áudio e a tela tingida de preto. João reconhece, agora, com o filme pronto, que errou. Não quis romper a barreira entre o filho do dono e o mordomo da casa. Pena. Santiago morreu em 1994. Fica agora só o filme em retalhos, tentativa de reatar cenas dispersas, e as costurar com um presente mais esclarecido, menos compexo do que em 1992. O João de hoje, quem sabe, teria feito outro filme, a partir de outras imagens. Quem sabe. Ele mesmo diz isso durante o filme.

Mas não seria esse Santiago. Seria outro. E esse é genial justamente pelo processo ao avesso. Do diretor revendo seus erros, expondo os problemas diante da platéia. É risível ver João forçando a barra, regravando takes de um mesmo plano. Um documentarista tentando extrair a realidade através das técnicas de ficção. Porque quer ver seu personagem atuando melhor. Nem que para isso tenha de perder a naturalidade. Talvez por isso, pela vergonha de rever-se, João disse quando do lançamento de Santiago que jamais voltaria a filmar.

Jamais voltará a filmar, espera-se, como durante a produção de Santiago. Inseguro, equivocado e insensível. Mas espera-se que volte a filmar com a mesma coragem, ousadia e capacidade reflexiva desse Santiago, finalizado e despido de todo pudor. Esse João de Santiago, montado sob a linha tênue da técnica apurada, despido da vaidade, e querendo dissecar a filosofia desse cotidiano que insiste em revelar-se em um filme melhor e diferente com o tempo. Até a morte da imagem, nem por isso, fim da fruição. Os silêncios do filme, na tela preta, que o digam.

3 comentários:

Anônimo disse...

Dá vontade de ver o filme. Congratulations. Layout novo, hein?

Mugnolini disse...

agora só no DVD. filme bom só fica uma semana em cartaz em caxias. raramente ampliam-se os dias.
assista até mesmo de olhos bem fechados...

Anônimo disse...

Perdi o filme por uma falha prosaica: não acordar a tempo de...
td bem;pelo menos na mesma noite compensamos com "Exuberante deserto" (é esse o título né...), no Ordovaz.
Saudações