quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Nasce morre

Um andarilho desafia a sede. A terra seca racha a sola dos pés. O sol a pino corta os lábios cerrados. Nenhuma nuvem no céu. Quase tudo a perder de vista. Coberto de poeira, José avança. Deixa para trás a tristeza revestida de apatia. E mesmo com as pernas trêmulas dribla a incerteza da próxima curva. Não desiste. Crava as unhas no véu da esperança e arrasta o corpo convalescente.

Desafia o improvável e sorri. Não é sarcasmo, muito menos ironia. Não blasfema. Jamais. Sua travessia é assistida pelo divino. Vem lá do céu a proteção. Depois de encontrar a fé perdida no descampado da vida, desistiu até de usar facão. Não precisa do aço afiado. Agora não cabe mais na boca o ódio, só o perdão.

José não virou santo. Não mudou da noite para o dia. Resolveu só experimentar o caminho inverso. Ao invés de descer a lomba, aproveitando o declive para voltar atrás, despiu-se da insegurança e subiu. E nunca mais parou de caminhar. Tem dias que a sola dos pés quase não toca a terra seca. José parece flutuar rumo ao horizonte. Adentro da estrada sem fim.

Não come, não bebe, não pára. Sonha de olhos vidrados, encarando o futuro como quem seduz a mulher mais linda. E mesmo sem dizer uma só palavra José emociona. Nunca teve sua história contada. Ninguém sabe onde nasceu, nem onde morava antes de começar a andar por aí. Não usa lenço, nem documento.

Quando cansa, respira, encara o sol alaranjado, inspira, olha de soslaio para trás, balança a cabeça, como quem diz "nunca mais", pisa forte a terra seca, e caminha. Avante. Contra o sol, a chuva, as rajadas de vento. Contra todos que deixa para trás comendo poeira. José deixa sua marca no rastro do tempo. Mas ele sabe que nem todos enxergam as pegadas.

Preferem seu pesar que anoitece no passado. Porque é mais fácil perseguir a lágrima que desaparece na terra seca, do que o sorriso amoroso de despir o espinho das rosas. Enquanto isso, José nasce e morre todos os dias na lembrança de alguém.

conto de hoje publicado no jornal Pioneiro.

2 comentários:

Anônimo disse...

Lindo texto. Parabéns, vc é um ótimo escritor, e mesmo que não saiba, estava muito inspirado quando escreveu esse. Parabéns.

Mugnolini disse...

Muito obrigado pelo comentário, seu anônimo.
gostaria de saber quem é, se não se importa. não que isso vá mudar a minha postura, nada disso, mas é que é meio chato ver que um ANÔNIMO me deixou um recado.

inté mais
obrigado pela visita