Era pra ter sido só um sonho. Nada mais. Nada além de um inebriante sonho tão delicado quanto o beijo de quem ama sem cobrança. Um sonho em preto e branco. Nesse sonho morrer é impossível; divagar é preciso. Como verso livre sem a rima rica, nem a contagem de palavras e sílabas. Sem limites entre o céu e a terra, sem a vaidade que nos corrói os calcanhares.
Num instante sobrevoo um oceano límpido e infinito. Fecho os olhos e caio sem vertigem. A água gelada interrompe o transe. Acordo dentro da escuridão silenciosa. Ainda em gesto de quem nada mar adentro, sinto a rugosidade da areia entre meus dedos. Logo encontro a saída. Havia entrado na água pra sair na areia.
Mas como disse antes, era pra ter sido só um sonho. Nada mais.
Longe, bem distante, o sol imponente no horizonte trata de aquecer a areia debaixo dos meus pés. A essa altura já imaginava algo de messiânico nessa travessia. Mera ilusão. Não existe oásis no deserto. Nem tão pouco a barba desfigurada durante a travessia indica minha metamorfose em Cristo. O Segundo Cristo, quem sabe. Improvável.
Era pra ter sido só um sonho.
Nada mais. Nada além de um sonho inquieto, como todos os que Dali e Fellini enfrentaram e saíram ilesos. Ou quase. Porque há sonhos tão intensos que não dá vontade de voltar a abrir os olhos. Sonhos carregados de amor que nos deixa o corpo imóvel, inerente a própria sorte.
E no deserto, caminhando sobre a areia escaldante, com a barba de Cristo, mas desprovido de sua santidade, encontrei um poeta. De mãos doces como a chuva. Escrevia poemas na areia. Não tardavam e logo sumiam, embaralhados aos grãos de areia trazidos pelo vento.
Deu vontade de lutar pela permanência da palavra, da poesia. Mas logo fui demovido da idéia. Tão fugaz meu pensamento, voraz o vento. De costas pra poesia percebi sua perenidade. Menos aflito permiti que a poesia cumprisse seu papel. Mesmo que seja na areia. E só merece decifrá-la quem tem paciência de entender o tempo das coisas. De todas elas. Mesmo que seja o tempo de um sonho.
E era pra ter sido só um sonho. Nada mais.
Mas o tempo desse sonho, por eu já não me importar com sua permanência, tem durado anos e anos e anos. Mesmo quando durmo e não sonho esse sonho de areias escaldantes cujo portal é um oceano límpido e infinito, sinto a mesma brisa desse oceano e a mesma doce-aspereza da areia quente desse deserto perene.
E era pra ter sido só um sonho.
Nem mesmo quando o sol se pôs e a lua cheia iluminou o deserto tive medo. Talvez fosse aquela música do Nino Rota. Aquela do "Oito e Meio", do Fellini. Meio circo, meio deboche, com cheiro de travessuras de menino. Não sei. Não era pra ter sido nada além de um sonho. Mas ele perdura. Insiste na missão de desvendar o reino. O meu reino? Já disse que não acredito nesse reino messiânico que me coloca como um Segundo Jesus. Essa barba não tem poder de transformar água em vinho. Antes tivesse...
Nada disso. Era pra ser só um sonho. Mas nem no sonho eu transformava água em vinho. Talvez não tenha esse poder porque não saberia o que fazer com tanto vinho.
E logo amanheceu. Nino Rota sumiu. E levou com ele a doce sonoridade com gosto de infância, de moleque, de guri travesso. Olhei em torno e a areia quente tinha virado asfalto. No lugar do deserto sem fim, arranha-céus. No lugar do silêncio, trânsito infernal. Buzinas, gente gritando. Promoção de calça jeans! Promoção de calça jeans! Leva dez paga cinco!!!
Mas não era pra ter sido só um sonho?
Pés descalços pisando o asfalto quente. Uma estranha música que eu não conseguia decifrar, muito menos perceber de onde vinha, me contagiou. Curioso, cansado, quase amaldiçoado, enfrentei a neblina de gente sem graça, o trânsito trôpego, as caras amarradas, driblei o moleque na esquina degolando a velhinha, e me deparei com um velho usando chapéu de cowboy. Sentado na sarjeta, ele desferia:
Hey! Mr. Tambourine Man, play a song for me
I'm not sleepy and there is no place I'm going to.
Hey! Mr. Tambourine Man, play a song for me,
In the jingle jangle morning
I'll come followin' you
Antes que ele pudesse continuar sua canção um palhaço arrancou o violão da sua mão, arremessou-o metros longe. Espatifou-se no asfalto. O velho levantou-se, abraçou o palhaço e saíram rindo, como se fosse o final de um filme do Chaplin. Enfrentaram a rua na contramão, como bêbados, como se dessem adeus pra isso que eu pensava ser só um sonho, nada mais.
E era pra ter sido só um sonho. Só. Nada mais. Não fosse...
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Um comentário:
Eii fazia tempo que eu não aparecia por aqui... sempre muito bom te ler!
bjks =]
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