quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

faraway, so close

Para Carlinhos


Cena 1 - Interna/amanhecer/diante do espelho
NARRAÇÃO EM OFF: "Perto, mas nem tão perto que seja difícil separar quem sou de quem você tenta me fazer parecer. Longe, mas nem tão longe a ponto de o coração arder de saudade".

Fade out/Fade in.

Cena 2 - Interna/noite/quarto
Beth Gibbons está deitada na cama. Lençóis revirados, maquiagem borrada, janela escancarada, cortinas dançando ao vento. Um sopro de incerteza paira no ar. Beth canta, ou melhor, murmura: "Give me a reason to love you, give me a reason to be a woman".

Fade out/Fade in.

Cena 3 - Externa/entardecer/parquinho
Menino triste. Sentado no balanço, quase parado, não fosse o movimento das pernas, desenhando o nada na terra seca. Atrás do menino não está a paisagem realista do presente, está passando uma versão surrealista da sua vida inteira. Vida que o menino-adulto revê com toda a inocência e desterro. Imagnes rápidas, aleatórias, sem ordem natural - apenas emotiva e sentimental.

Fade out/Fade in.

Cena 4 - Externa/amanhecer/cidade pequena, sem mar
Silêncio noturno no alvorecer de uma cidade pequena. Nem mesmo os pássaros se atrevem a interromper o luto.

Cena 5 - Externa/amanhecer/cidade com mar
Beira do mar. Pessoas coradas de sol ofuscam outras sem o mesmo brilho na pele, sem o mesmo sorriso serelepe no olhar. Lá no mar, depois de um mergulho e do primeiro banho de sol da manhã, um homem resolve levantar-se em meio a multidão e caminhar. Recita de caboa a rabo um poema de Ferreira Gullar. Não grita, apenas recita baixinho, equanto caminha na beirinha do mar, lavando os pés. Olhos no horizonte, engolindo o choro, recita:

"Que deus se enterra nesta tarde
em Ipanema? Que morto
vaza seu corpo no mar?

Mais alto ergue o mar os seus
ramos de pedra fugaz.
Como o canto que se perde
é a agitação colorida

das verduras, o sagrado
cruzar de espadas vermelhas
e negras. Rei de paus. Valete.
A Dama sacode a fronte

coroada de açucenas,
seus lutuosos cabelos,
sua túnica em quadrados
preto e branco. Amor e morte".

Já nos últimos versos vimos apenas o homem caminhar rumo ao infinito pela beira do mar. Aos poucos ele some e perde-se em meio a maresia.

Fade out/Fade in.

Cena 6 - Interna/amanhecer/velório na cidade pequena, sem mar
No meio da sala tinha um caixão. Um caixão. Madeira, madeira, madeira e madeira. Dentro dele ainda um corpo. Inerte. Desligado daqui, do nosso tempo. Agora livre, para procurar o seu lugar em outro plano. Nessa nova tragetória vai passar por algumas provações para poder sentar ao lado de Deus, pai-todo-poderoso. Ao redor do caixão pessoas rezam, algumas com um terço enrolado aos dedos. Outros de olhos cerrados, outros desviam o olhar do caixão. Mas todos rezam, da sua forma, pela vitória do homem que se foi. Silêncio. Ali no outro lado da sala tem uma janela e nessa janela vemos o menino do balanço. A câmera se aproxima. Lentamente. Em travelling. Ele chora e diz em silêncio, só pra gente ouvir. A gente que está do lado de fora desse filme:

"Pai, pode ir. Vá em paz. Me perdoa o desafeto de um dia sem noção. Porque eu te perdoo os dias de desafeto sem noção. Vá e descanse em paz. Deus é justo. Peças perdão e sentarás ao lado de Deus Pai Todo Poderoso. Te amo, sempre".

Fade out.

Fim.

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