quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Por quem Miles Davis chora?

Para M. de Menezes
e Augusto Nesi



Trancado dentro do carro no dia mais quente das últimas semanas me perguntava o porquê de tanto lamento. Aquele trompete ressoando e se impondo à melodia, me conduzindo de um extremo ao outro da existência: da plenitude da felicidade à derrocada da tristeza. Por quê? Por quem?

Lá fora o sol impiedoso derretia a todos. Caras cansadas, sôfregas de enfrentar o deserto de asfalto, mais pareciam os personagens de “Faça a Coisa Certa”, do Spike Lee. Nem mesmo as flores dos floristas de esquina sobreviviam. Murchavam diante do inevitável. E quando as pétalas das flores ressecadas se acumulam na sarjeta é sintoma de que parte da poesia do mundo se perde. Talvez nunca mais essa porção seja revista. Vai pro lixo. Sacralizada a poesia, mas pro lixo.

Enquanto isso, enquanto transitava de um extremo ao outro dessa avenida esguia, cada vez menos charmosa e mais poluída, Miles deixava fluir sua incondicional virulência. Miles não é o tipo de cara que deixa rastro, muito menos esbraveja numa atitude intempestiva de se impor. Miles simplesmente exala seu perfume no ar. Igualzinho às rosas de Cartola. Da mesma essência, ao mesmo pó.

Miles só queria nos conduzir ao silêncio. Pra um lugar onde só pudéssemos ouvir o nosso coração. Mais nada. Mas como enfrentarmos nossa ignorância? A solução seria permanecer trancafiado nesse carro, atravessando o asfalto quente, e ouvir sem parar Miles Davis e suas notas de um azul sublime e profundo? Não sei. Não descobri até agora. Mas percebi que Miles chora. E aparentemente isso não faz sentido.

Astor Piazzolla é da mesma verve. Aparentemente desconexo, mas imponderavelmente sublime. Miles e Piazzolla nos conduzem com exatidão por todos os percursos da vida. E quanto mais atribulada, monótona e dispersa for essa vida que a gente leva mais seus floreios e virulências descabidas se impõem. Mas quando conseguimos perceber o sentido e a necessidade da poesia é porque estamos preparados pra ouvir as sutilezas de Piazzolla e Miles.

Mesmo dentro dessa sutileza serena, longe da noite veloz (de Gullar), não consigo entender porque ele chora. O tempo é outro. De sublimar esse lamento e me deixar conduzir pelo inesperado de suas notas. De preferência as mais melódicas, que carregam todos os outros instrumentos na mesma cadência. Longe do desespero, dos dedos ágeis e velozes, longe do fôlego trôpego, longe da insensatez daqueles devaneios de Miles, entendo melhor o que tem pra me dizer.

Segue teu lamento Miles. Eu sigo cá do outro lado do rio, varrendo as ruas e recolhendo as pétalas secas. Sigo armando jogos de armar. Sigo aparando a grama dos jardins suspensos. Sigo aqui do outro lado de lá desejando entender por quem choras... Como um Fausto às avessas espero nunca descobrir. Mas voltarei a casa, como um bom filho pródigo. Como o filho que honra mesmo à distância, como o filho que discute em casa, mas reconhece em casa sua finitude.

Menor do que um grão de areia, mais fugaz do que a última nota de suspiro de Miles.

Dorme, guri.

8 comentários:

rodrigo lopes disse...

Mas é bom esse escritor. Quando eu crescer quero ser que nem o MUgnol. Ah, eu também quero um post com dedicatória, viu?
Bj

Anônimo disse...

Querido Mugnol,
Tô curioso pra saber qual álbum tu estava ouvindo.
Vou chutar ok?
( tenho 3 chances )
Ou o Kind of Blue, ou Milestones ou Round Midnight.
Acertei?

Valeu a lembrança.
MILES SMILES ALIVE !!!

"Nem mil milhas,
nem mil dias,
sem miles davis"
Guto

Mugnolini disse...

Guto, meu caro. Acertou em cheio na tua primeira opção: "Kind of Blue". Segui teu bom conselho.

Rodrigo, calma...o que é teu tá guardado.

abrazzzos

rodrigo lopes disse...

Nâo resisti, pois adoro "Round Midnight".

It begins to tell 'round midnight
I do pretty well 'til after sundown
Suppertime i'm feeling sad
But it really gets bad 'round midnight

Memories always start 'round midnight
Haven't got the heart to stand those memories
When my heart is still with you
And old midnight knows it too

When some quarrel that we had needs mending
Doesn't mean that our love is ending
darling,i need you lately i find
Out of my arms, now out, out of my mind

Let our love take wing some midnight
Let the angels sing for your returning
Let our love stay so safe and so sound
When old midnight comes around

Anônimo disse...

sempre a tempo
acho que posso agradecer também.

marco demenezes disse...

ola, que pasa

tengo lagrimas en mis ojos
e en el cristal de los ante-ojos

quando quiser ver e ouvir a edição comemorativa de 50 anos do Kind of Blue, com direito a vinil azul, venha até nossa casa.

ô, era tu em Baires?
gracias, gracias.

abraço forte
teu amigo Marco

Mugnolini disse...

Vinil?

Pra mim vinil é aquelas roupas que as tias de filmes de putaria usam pra seduzir a molecada.

Mugnolini disse...
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