Um tiro. Só. Mais nada. Além do apêndice rasgado e da bílis lavando as coxas...nada mais. Um impulso renegando a existência. O véu cobrindo a face.
Antes do tiro. Ali na cama, os dois enrolados entre lençóis amarelados pelo tempo. Ela muda, corcunda e paranóica. Recolhia bolinhas de plástico e as guardava numa caixa. Depois tirava-as e espalhava pela cama. E assim seguia, entre dias e noites como se pudesse afastar o medo da ausência. Ele duro, carne putrefata, olhos esbugalhados.
Cortina balançando, voando, alva, e pura, entrando e saindo da janela, indo e vindo pra espalhar a boa nova. Ele morto, ela louca. Nas paredes do quarto escritos, rabiscos – tudo em sangue, pra não sumir depois da demolição. Tudo seria lindo, não fosse o sermão das velhas em romaria gritando e gemendo uns versos tresloucados.
O tiro rasgou a porta. Era noite. Ela com a boca no falo. Ele deitado sorvendo o prazer. O pai traído. A mãe acariciando o filho cego, surdo, mudo e paralítico. Pau mole lambuzado de sangue e bílis. E a mãe seguia o ritual demente. De pau mole na boca sentiu o filho esfriar. Devolveu-lhe o sangue com um beijos nos lábios. A mãe espalhou as bolinhas de plástico pela cama.
E nasceu o dia. E mesmo depois da morte não havia vida sequer nos pulsos da mãe. Marteladas na porta. Silêncio. Aos poucos, vagarosa como a sombra da morte, um pouco d'água entrava por debaixo da porta. A água seguiu subindo, até o entardecer. Lavando tudo, inclusive o sangue embebecido nos lençóis, a angústia, a febre, os sermões. A mão que balança o berço já estava também debaixo d'água.
A água alcançava a altura da janela e corria pra parede abaixo manchando a tinta branca. Uma corredeira suja, fedorenta, amarga e venenosa. A mãe não suportou e mergulhou. Fechou os olhos, ouviu um coro de björks tristes e melancólicas e deu adeus. O filho não ouviu. O corpo ganhou escamas, braços e pernas viraram nadadeiras e ela seguiu corredeira abaixo. Rastejou pelo cordão da calçada e vazou pelo bueiro.
O filho acordou dois dias depois. Corpo envolto em tripas de porco, balançava ao vento num balanço estendido na copa de uma árvore encravada num bosque de fadas sem asas. Acordado, flutuou e foi acomodado numa cama de flores amarelas e perfumadas de campo. Recebeu a bênção de um unicórnio de chifre serrado e voltou a adormecer.
Acordou na mesma casa. Paredes lavadas. Levantou-se da cama e viu-se à imagem e semelhança da mãe, mas com pênis – herança do pai traído.
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