quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006

nunca disse adeus

Aos 15 anos ganhei um violoncelo e um tapa na orelha. Nunca disse adeus.

Lembro da sua mão doce, suave, quente, afável, afastando os sonhos ruins da minha pele. Seus olhinhos brilhantes me guiavam através da noite. Acordar era vê-la sorrir antes mesmo do raiar do dia. Andava pela casa como se pairasse pelo ar, como se espalhasse todos os perfumes das flores jamais encontradas. Esse encanto, quase magia, nunca me convenceu. Às vezes, através da janela, assistia ao balanço dançando ao vento sozinho. Em casa tudo sempre foi tão limpo, claro, alvo e ao mesmo tempo tão confuso.

Na infância a luminosidade dos raios de sol sempre lavou a casa. Mas há tempos que as janelas seguem trancadas. O pai ajoelhado sobre o tapete diz umas coisas que não entendo, nunca entendi e nunca me explicou. A mãe agarrada a imagem de um homem de braços abertos e pregados numa cruz não diz uma só palavra. Apenas chora. Tenho medo desse delírio. Mas não é delírio. Porque o primeiro tiro acertou o peito do pai. Não ouvi nada.

Adormeci e acordei com o sol invadindo o quarto. Não vi sorriso algum. Nunca me disseram nada. Cresci com a falta do pai. Essa falta que rouba a fala. Essa falta que ama. A mãe amorosa ainda recolhe as poucas frutas do quintal e as espalha sobre a mesa. Mas o perfume das flores foi secando junto com as folhas. As paredes que eram brancas agora têm mofo. A soleira da janela descasca e o assoalho esfarela.

Pra espantar a solidão, acalentar a saudade e impedir a decomposição da casa, minha mãe toca violoncelo. Não sempre, só nas noites frias. Frio de cristalizar a espinha. Aquele frio prenúncio de morte. Nunca reconheci a música, jamais a interrompi pra me explicar que sonoridade era essa. Mas espantava minha dor. Espantava o medo. Lançava-me janela afora pra correr o mundo.

Numa noite dessas, que o frio congela a lágrima, a mãe entrou no quarto. Largou o violoncelo ao lado da cama, ajoelhou-se e sem dizer nada, beijou-me a testa. Nunca disse adeus.

Conto de hoje no jornal Pioneiro. Ilustração de Fábio Nienow.

5 comentários:

Anônimo disse...

só pra variar, linda, sensível, poética. sou tua fã, sabia? :P
bjus

Mugnolini disse...

grácias, tri. obrigado. continue lendo - até não suportar mais.

Anônimo disse...

gostei. gostei. gostei.

Anônimo disse...

Lindo!

Mugnolini disse...

tks....tks....